Introdução
O Espiritismo sempre valorizou o ensino moral
de Jesus como referência para o aperfeiçoamento do ser. Entretanto, ao longo de
sua história, herdou termos e práticas do cristianismo tradicional que, embora
bem-intencionados, carregam significados teológicos e culturais distintos da
proposta kardeciana. Entre eles, destacam-se as expressões “evangelização”,
“cristianismo redivivo”, “evangelização infantojuvenil” e “evangelho no lar”.
A reflexão sobre essas palavras não é mera
questão semântica, mas doutrinária e pedagógica: o vocabulário molda a
compreensão das ideias e define a direção do trabalho educativo. Revisar
conceitos, portanto, é um ato de fidelidade à razão e ao progresso moral que o
Espiritismo propõe.
1. De “Evangelizar” a “Educar o Espírito”
O verbo evangelizar provém do grego
eu-angélion, “anunciar boas novas”.
Na tradição cristã, sempre esteve ligado à
pregação e à conversão religiosa — à missão de difundir o Evangelho como
palavra de salvação.
O Espiritismo, porém, não visa converter, mas
esclarecer e educar o Espírito imortal, conduzindo-o a compreender as leis
morais da vida e a aplicá-las no próprio aperfeiçoamento pela ação do seu livre
arbítrio.
Assim, “evangelizar”, no contexto espírita,
deveria significar educar espiritualmente com base na moral apresentada por
Jesus nos evangelhos e na explicação racional da Doutrina.
Para evitar confusões com práticas
proselitistas, a terminologia pode evoluir para expressões mais precisas, como:
- Educação Espírita
- Educação do Espírito
- Educação pela Luz do
Evangelho
- Formação
Ético-Espiritual
Essas formas preservam a essência moral do
ensino de Jesus, sem perder o caráter filosófico e pedagógico da Doutrina.
2. “Cristianismo Redivivo”: entre a poesia e o
anacronismo
A expressão “Cristianismo Redivivo” foi
consagrada por Emmanuel (1) e outros mentores para reafirmar o caráter cristão
da Doutrina e representar o Espiritismo como retorno à pureza moral do
cristianismo primitivo.
“Redivivo” vem do latim redivivus, que
significa “ressuscitado, revivido, tornado a viver”. Assim, “Cristianismo
Redivivo” quer dizer “o cristianismo que volta a viver”, como se o Espiritismo
fosse sua reedição autêntica, após séculos de desvios teológicos e
institucionais.
O valor positivo da expressão está em seu
espírito simbólico: ela sugere o renascimento da moral cristã essencial,
despojada de dogmas e rituais — algo que o Espiritismo realmente realiza.
A intenção é nobre, mas o termo pode induzir a
um equívoco histórico: reviver o cristianismo dos apóstolos significaria
retomar um período ainda confuso e influenciado por crenças e expectativas
apocalípticas, no qual os próprios discípulos tinham dificuldade em compreender
plenamente o Mestre.
O “cristianismo primitivo” conviveu entre
dúvidas, disputas doutrinárias e interpretações parciais, não faria sentido
revivê-lo tal como foi. Nos Evangelhos e em Atos dos Apóstolos, observamos:
- Desentendimentos entre
Pedro e Paulo.
- Expectativas
apocalípticas de um retorno imediato do Cristo.
- Comunidades diferentes
(Jerusalém, Antioquia, Corinto) com visões e costumes divergentes.
- Influências judaicas,
gnósticas e greco-romanas.
O problema é o termo em si, que induz à ideia
de restauração histórica ou repetição de um modelo primitivo. O que o
Espiritismo faz é transcender o cristianismo histórico, não reencená-lo.
Ou seja, o “cristianismo redivivo” literal não
é um ideal puro, mas um período de transição confusa e sincrética, em que os
apóstolos ainda tentavam entender Jesus sob as categorias religiosas de sua
época.
O Espiritismo não busca restaurar o passado,
mas iluminar o presente com nova compreensão.
Mais adequado seria falar em:
- Cristianismo
Esclarecido — o ensino moral de Jesus reinterpretado à luz da razão e da
imortalidade.
- Evangelho à Luz do
Espiritismo — como propôs o próprio Kardec.
- Cristianismo em
Espírito e Verdade — retomando a ideia evangélica de vivência interior, não
ritualística.
Assim, o Espiritismo não é o “cristianismo que
volta”, mas a continuação evolutiva do pensamento moral do Cristo, agora
esclarecido pelo conhecimento espiritual.
3. Evangelização Infantojuvenil: da catequese à
educação do Espírito
A chamada “Evangelização Infantojuvenil” nasceu
de sincera preocupação com o preparo moral das novas gerações.
Contudo, o nome herdado das tradições
religiosas pode gerar confusão: evangelizar crianças não é “convertê-las”, mas
educá-las espiritualmente em liberdade e razão.
O termo “evangelização” herdou o tom
religioso-catequético, e o foco, em muitos lugares, tornou-se o ensino de
passagens evangélicas isoladas, em vez de uma formação integral do ser
espiritual.
Muitas iniciativas ainda se limitam ao estudo
de passagens bíblicas, com ênfase moralizante, em vez de oferecer uma formação
integral baseada na visão reencarnacionista e na lei de causa e efeito.
Problemas conceituais
- O termo “evangelização”
ainda sugere pregação religiosa, não processo educativo evolutivo.
- O ensino frequentemente
fica centrado em narrativas bíblicas, não nos princípios universais do
Espiritismo.
- Há risco de
infantilização moral quando o conteúdo é reduzido a “ser bonzinho” e “amar o
próximo”, sem progressão filosófica.
Para alinhar a terminologia ao pensamento
espírita, algumas expressões mais adequadas seriam:
- Educação Espírita
Infantojuvenil (2)
- Educação Moral e
Espiritual da Infância e Juventude
- Pedagogia Espírita para
Crianças e Jovens
Essas denominações destacam o papel do educador
como facilitador da evolução do Espírito, e não como transmissor de dogmas.
O conteúdo, por sua vez, pode incorporar
gradualmente o estudo das Leis Morais, da vida espiritual, da reencarnação e da
responsabilidade pessoal, ampliando a compreensão das virtudes evangélicas
dentro de uma lógica evolutiva.
4. O “Evangelho no Lar”: da leitura ritual ao
estudo integral
A prática do Evangelho no Lar consolidou-se no espiritismo
brasileiro como momento de paz e união familiar. Ela promove a oração, o
diálogo e a harmonia vibratória do ambiente doméstico — valores preciosos.
Entretanto, restringir o estudo ao Evangelho
Segundo o Espiritismo pode limitar o entendimento da Doutrina, e o próprio
título pode sugerir uma reunião de caráter devocional, semelhante às “leituras
bíblicas” cristãs.
Limitações do formato atual
- A
leitura linear e repetitiva do mesmo livro pode se tornar ritualística,
não reflexiva.
- O
termo “Evangelho no Lar” sugere uma prática religiosa doméstica,
aproximando-se da “reunião bíblica” de igrejas cristãs.
- O
conteúdo, às vezes, é tratado como “leitura sagrada”, e não como estudo
racional e diálogo moral.
Nada impede que a reunião familiar mantenha sua
simplicidade e sentimento, mas que seja também um espaço de aprendizado
doutrinário completo, integrando outras obras fundamentais de Kardec e a
reflexão sobre as Leis Morais.
Sugestões de atualização:
- Estudo Espírita em
Família
- Reflexão Doutrinária no
Lar
- Vivência do Evangelho à
Luz do Espiritismo
Essas expressões deslocam o foco do rito para o
conteúdo, reforçando que o lar é uma escola espiritual, não um templo.
Conclusão
Revisar termos e práticas não é romper com a
tradição, mas purificar o sentido das palavras para que expressem fielmente a
proposta espírita.
Evangelizar, no Espiritismo, é educar o
Espírito; reviver o cristianismo é compreendê-lo sob nova luz; evangelizar
crianças é formar consciências livres e responsáveis; e fazer o evangelho no
lar é transformar o lar em escola do coração e da razão.
O movimento espírita, ao atualizar sua
linguagem, reafirma sua essência: educar pela verdade, amar pelo exemplo e
progredir pela razão.
(1) O Consolador (questão 352)
(2) Comece pelo comecinho:
Educação espírita infantojuvenil: uma proposta de trabalho. Martha Rios
Guimarães, Matão: O Clarim, 2018.

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